Estação de São Bento: quatro painéis, quatro histórias
Quem nunca entrou pela estação de
São Bento dentro, edifício neoclássico projectado pelo arquitecto José Marques da Silva, ante-câmara da cidade do Porto, só para admirar o património
artístico, os magníficos painéis de azulejos, executados pelo pintor Jorge Colaço, que adornam e embelezam as suas paredes, belíssimas narrativas
imagéticas da História de Portugal? Por ventura, milhares de transeuntes
apressados para apanhar o comboio ou um tropel de turistas curiosos, de mapa em
punho, a perscrutarem a elevação estética que figura no átrio de São Bento,
antigo convento que, no século XVI, acolhia as freiras beneditinas da ordem de
São Bento de Ave Maria.
Comecemos, então, pela primeira história,
por uma das imagens em azulejo que se observam a partir da perspectiva de quem
atravessa o átrio pelo pórtico situado no lado esquerdo da fachada do edifício. Trata-se da apresentação de Egas Moniz e da sua respectiva
família perante o rei de Leão e Castela, Afonso VII, para saldar uma dívida de
fidelidade não cumprida pelo rei D. Afonso Henriques, aliás, primo deste rei
castelhano. Com efeito, depois de ter sido coroado na Catedral de Leão, Afonso
VII procurou granjear a obediência dos estados dependentes. Tal prerrogativa
estendia-se ao Condado Portucalense, governado por D. Afonso Henriques, que
acabou por jurar fidelidade ao rei de Castela, acto assumido por Egas Moniz, na
sequência do cerco ao castelo de Guimarães. Porém, Afonso Henriques destoou
mais tarde da promessa feita e, em consequência, Egas Moniz, qual símbolo de
fidelidade vassálica, viu-se na obrigação moral de se apresentar, a si e à sua
família, diante de Afonso VII, com o fim de, como descreve Camões no último
verso da estância 38 do canto 3 dos Lusíadas,
“pagar com a vida o prometido”. Nos azulejos, Egas Moniz, a mulher e os filhos
são representados descalços e com uma corda segurada nas mãos, determinados a
morrer para restaurarem a “palavra empenhada”. Conta a lenda que o acto
emocionou o rei castelhano, de tal forma que isentou de culpas o fiel aio de
Afonso Henriques e sua família.
O painel de azulejos sobreposto a
este último relata a história do Torneio de Arcos de Valdevez. O torneio,
recurso militar consagrado no código da cavalaria medieval para evitar a
eclosão de uma batalha em campo aberto, travou-se entre os cavaleiros
portugueses e castelhanos em 1140 na vila homónima. O torneio disputou-se
depois de Afonso Henriques ter desrespeitado o tratado de paz firmado em Tui e,
posteriormente, invadido a Galiza, após a conquista portuguesa na Batalha de Ourique (1139). Como retaliação, Afonso VII decide também ele invadir a
fronteira portuguesa, devastando terras e castelos, até descer em direcção a
Valdevez, onde as hostes se encontram. O torneio saldou-se por uma vitória
portuguesa.
Do outro lado do átrio,
observamos outros dois painéis de histórias portuguesas azulejadas. No plano
inferior, é-nos apresentado a figura heróica do Infante D. Henrique, aquando da
expedição e conquista de Ceuta (1415), acontecimento que determina a origem
dessa grande epopeia de ouro que foi a expansão ultramarina portuguesa. A
tomada de Ceuta começou a ser pensada ainda no ano de 1409 e tratou-se,
indubitavelmente, de uma iniciativa organizada e promovida pela Coroa
portuguesa. Para uma missão de tal envergadura, que fervilhou o entusiamo de
quase toda uma nação, foi constituída uma armada composta por cerca de duzentos
navios e mais de 20 mil homens, a maior esquadra que até à data se reunira no
porto de Lisboa. A armada lusitana zarpou do Tejo a 25 de Julho de 1415 e,
ultrapassadas todas as adversidades meteorológicas e humanas, desembarcou por
fim em Ceuta no mês seguinte, a 22 de Agosto. Impelidos pelo ideal
cavaleiresco, cruzadístico, os infantes portugueses D. Duarte, D. Pedro e D.
Henrique, os mais entusiastas apologistas desta empresa, surgem a combater o
inimigo marroquino, um acto de afirmação dos mais insignes valores guerreiros.
Findadas as lutas, D. João I sagra, na mesquita agora convertida em igreja
cristã, os infantes seus filhos. Jorge Colaço fornece-nos uma imagem não menos
apoteótica de todo este panorama que a conquista da praça de Ceuta favoreceu,
inequivocamente um “marco miliário da História de Portugal”. É ver o jovem, mas
impetuoso e audaz infante D. Henrique a submeter, com a bandeira hasteada e o
peito da couraça bem saliente, heroificado, os assustados e derrotados mouros.
No plano superior celebra-se a
chegada ao Porto do primeiro rei da segunda dinastia portuguesa, o já referido
D. João I, para consumar o seu matrimónio com D. Filipa de Lencastre. O
casamento de D. João I com D. Filipa de Lencastre inscreve-se no contexto da
aliança diplomática, política e comercial que Portugal estabeleceu com a
Inglaterra. Em 1386 foi assinado o Tratado de Windsor, o garante selado pelas
duas nações de uma paz perpétua, no qual a Inglaterra se comprometia a apoiar a
nova dinastia e o monarca português a proteger os interesses do duque de
Lencastre ao trono castelhano. D. João I, ainda no mesmo ano, viria a
encontrar-se com o duque inglês em Ponte de Mouro, onde seria assinalado um
novo acordo que previa a invasão anglo-lusa do reino de Castela. Foi durante
este encontro que ficaram também acertados os detalhes para a realização da
boda entre o rei D. João I e a filha do duque de Lencastre, D. Filipa de
Lencastre, cerimónia que veio a concretizar-se no Porto, em 1387, acontecimento
histórico representado nestes painéis da estação de São Bento, nos quais
podemos ver identificados a figura do rei português montado a cavalo, precedido
da sua comitiva, a fazer a sua retumbante entrada na cidade do Porto, conduzido
pela mão abençoadora do patriarca.
Por Joaquim Pinto
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