Tutto è
suscettibile di teatro. Traduzindo, tudo é susceptível de teatro, considerava Carlo Goldoni (1707-1793), dramaturgo
italiano, “reformador cauteloso”, que decidiu destronar a vigência da commedia dell’arte, a comédia
popular assente na liberdade dada ao actor para representar, improvisando, uma
certa personagem-tipo, e introduzir o real em palco, calçando-lhe uns “sapatos
sujos”, na expressão de Jorge Silva Melo,
tradutor e encenador, que, com prazer, regressa a Goldoni, para oferecer ao
público do Teatro Nacional São João o espéctaculo A Estalajadeira,
comédia criada em 1753, agora em cartaz até dia 3 de Março.
A estalajadeira Mirandolina é a personagem que determina toda a narrativa desta comédia de Goldoni, escrita em 1753 Fonte: TNSJ |
Por esta estalagem passam e vão, ou já estão fixadas, uma diversidade autêntica de figuras-tipo, moldadas à imagem da classe social que representam. Mas se todas parecem ter dissemelhanças à primeira vista, ao menos são unânimes em algo que as mobiliza, a saber, um amor, um “enamoramento” pela própria estalajadeira, mulher ambígua, enigmática, ao mesmo tempo (falsa) sedutora e grácil rapariga que cultiva a sinceridade e manieta perspicazmente o sentimento dos homens, que a pretendem desposar ou talvez comprar.
Mirandolina e o cavaleiro de Ripafratta, personagens centrais da peça de Goldoni, representantes de um conflito secular entre os papéis sociais e sexuais do homem e da mulher Fonte: TNSJ |
Senão, vejamos:
um marquês, ávido de fortuna e
prestígio, espelho dos vícios mundanos de uma burguesia que se começava a
emancipar e a ocupar cargos públicos de relevo nos idos do século XVIII,
facilmente ludibriado pela galanteria de Mirandolina; o conde, homem bem vestido e aprumado, simboliza a disputa ideológica
e financeira entre uma nobreza em decadência, à qual pertence, e uma classe
burguesa em ascensão, personificada pelo marquês gabarola, legitimada nos
negócios e no comércio; o humilde empregado da estalagem, Fabrício, que auxilia a estalajadeira nas tarefas quotidianas de
servir os forasteiros; e ainda o cavaleiro,
personagem cortês mas irascível, que é simultaneamente o reflexo e o estilhaço
da persona de Mirandolina, no
sentido em que, tal como a estalajadeira repele os pretendentes ao seu coração,
o cavaleiro não só repele, abomina mesmo a presença da mulher mas, em
contraposição, este honrado fidalgo admira em Mirandolina a sua capacidade,
quase cândida, de sempre proferir a verdade, em vez de um simples verbo de
bajulação. Se o conde de Albafiorita e o marquês de Forlipópoli convocam os
conflitos de classe, entre a burguesia material e a nobreza titulada, a
estalajadeira e o cavaleiro de Ripafratta são símbolos fecundos dessa suprema
dualidade dos sexos, que Goldoni manobra com destreza, uma tensão existente que
coloca frente-a-frente o papel social da mulher e o do homem.
Cartaz oficial da peça A Estalajadeira de Goldoni, traduzida e encenada por Jorge Silva Melo Fonte: TNSJ |
A peça termina
com um ilusório monólogo, antes um diálogo que a estalajadeira estabelece mais
uma vez, pela última das vezes, com o público, a partir de uma cadeira situada
na boca de cena: “Se alguma vez estiverdes numa ocasião de duvidar, quase a
ceder, pensai nos artifícios que aprendestes, e lembrai-vos da estalajadeira!”
Certamente nos iremos lembrar dos artifícios de Mirandolina, a estalajadeira
que Goldoni foi buscar ao Mundo em renovação, ao Teatro da vida real.
Por Joaquim Pinto
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