sexta-feira, 8 de março de 2013

A Estalajadeira, de Goldoni


Tutto è suscettibile di teatro. Traduzindo, tudo é susceptível de teatro, considerava Carlo Goldoni (1707-1793), dramaturgo italiano, “reformador cauteloso”, que decidiu destronar a vigência da commedia dell’arte, a comédia popular assente na liberdade dada ao actor para representar, improvisando, uma certa personagem-tipo, e introduzir o real em palco, calçando-lhe uns “sapatos sujos”, na expressão de Jorge Silva Melo, tradutor e encenador, que, com prazer, regressa a Goldoni, para oferecer ao público do Teatro Nacional São João o espéctaculo A Estalajadeira, comédia criada em 1753, agora em cartaz até dia 3 de Março.
A estalajadeira Mirandolina é a personagem que determina toda a narrativa desta comédia de Goldoni, escrita em 1753
Fonte: TNSJ

Por esta estalagem passam e vão, ou já estão fixadas, uma diversidade autêntica de figuras-tipo, moldadas à imagem da classe social que representam. Mas se todas parecem ter dissemelhanças à primeira vista, ao menos são unânimes em algo que as mobiliza, a saber, um amor, um “enamoramento” pela própria estalajadeira, mulher ambígua, enigmática, ao mesmo tempo (falsa) sedutora e grácil rapariga que cultiva a sinceridade e manieta perspicazmente o sentimento dos homens, que a pretendem desposar ou talvez comprar.

Mirandolina e o cavaleiro de Ripafratta, personagens centrais da peça de Goldoni, representantes de um conflito secular entre os papéis sociais e sexuais do homem e da mulher Fonte: TNSJ
Senão, vejamos: um marquês, ávido de fortuna e prestígio, espelho dos vícios mundanos de uma burguesia que se começava a emancipar e a ocupar cargos públicos de relevo nos idos do século XVIII, facilmente ludibriado pela galanteria de Mirandolina; o conde, homem bem vestido e aprumado, simboliza a disputa ideológica e financeira entre uma nobreza em decadência, à qual pertence, e uma classe burguesa em ascensão, personificada pelo marquês gabarola, legitimada nos negócios e no comércio; o humilde empregado da estalagem, Fabrício, que auxilia a estalajadeira nas tarefas quotidianas de servir os forasteiros; e ainda o cavaleiro, personagem cortês mas irascível, que é simultaneamente o reflexo e o estilhaço da persona de Mirandolina, no sentido em que, tal como a estalajadeira repele os pretendentes ao seu coração, o cavaleiro não só repele, abomina mesmo a presença da mulher mas, em contraposição, este honrado fidalgo admira em Mirandolina a sua capacidade, quase cândida, de sempre proferir a verdade, em vez de um simples verbo de bajulação. Se o conde de Albafiorita e o marquês de Forlipópoli convocam os conflitos de classe, entre a burguesia material e a nobreza titulada, a estalajadeira e o cavaleiro de Ripafratta são símbolos fecundos dessa suprema dualidade dos sexos, que Goldoni manobra com destreza, uma tensão existente que coloca frente-a-frente o papel social da mulher e o do homem.

 
Cartaz oficial da peça A Estalajadeira de Goldoni, traduzida e encenada por Jorge Silva Melo
Fonte: TNSJ
 A peça termina com um ilusório monólogo, antes um diálogo que a estalajadeira estabelece mais uma vez, pela última das vezes, com o público, a partir de uma cadeira situada na boca de cena: “Se alguma vez estiverdes numa ocasião de duvidar, quase a ceder, pensai nos artifícios que aprendestes, e lembrai-vos da estalajadeira!” Certamente nos iremos lembrar dos artifícios de Mirandolina, a estalajadeira que Goldoni foi buscar ao Mundo em renovação, ao Teatro da vida real.
 
Por Joaquim Pinto
 
 

 

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