quinta-feira, 21 de março de 2013

Ao Sabor do Cinema

OSabor Do Cinema é uma actividade pensada pela Fundação de Serralves, consagrada a um público geral de cinéfilos, pessoas interessadas em interpelar (ou serem interpeladas) a imagem em movimento e discorrerem, discutirem sobre aquilo que vêem e analisam. São projecções-conversa estimulantes, trocas de ideias que, à semelhança do filme e do texto, não se esgotam, desde logo porque sempre há novos significados, referências, imagens e palavras a descobrir ou a redescobrir. Os ciclos ocorrem aos Domingos à tarde, arrancam às 16 horas e prolongam-se por esse sabor oferecido pelo cinema e o debate entre todos. A entrada é gratuita. Os dois filmes exibidos na última sessão, A Imitação e Notas para uma Oresteia Africana, respectivamente assinados por Saguenail e Pasolini, permitem-nos olhar subtilmente esse objecto de estudo grandioso e fascinante: a humanidade, pois claro, a condição humana e as suas vicissitudes, a morte, os problemas existenciais, mas também a justiça e a relação ambígua que alimentamos com os deuses mitológicos, mas também com Deus, dito universal, cristão.


Cartaz Oficial d'O Sabor do Cinema. Fotograma de Aniki Bóbó (1942), de Manoel de Oliveira

 
 
É essa humanidade, encarnada em Cristo, na sua paixão, no caminho doloroso até ao Gólgota, um bar de embriaguez e não um local bíblico, que Saguenail representa sem medo de acusações. Só para se ter uma ideia, num momento de enorme originalidade, a humanidade não se personifica num único rosto, antes numa sucessão vertiginosa de figuras, de plano para plano, interpretadas por 42 actores diferentes. A humanidade e as suas faces, rotativas, a olharem o destino consciente da morte, do sofrimento perpetrado às portas do bar ou no chão de uma casa-de-banho. Todos nos identificamos com esse Cristo estirado, em forma de cruz, ébrio, eterno padecente.

E depois da encenação, do espectáculo, depois do Cristo multifacetado ter deambulado pelos caminhos do martírio, ao ritmo da música poetizada de Ana Deus (apelido conveniente, diga-se) e da Paixão Segundo São Mateus de Bach convertida numa versão pop, electrónica, eis que o Cristo é expulso do bar, tal como o foi da vida, já morto, crucificado. As mulheres vêem desempenhar o seu papel de carpideiras, amortalham-no, choram-no. Enquanto isso acontece, a humanidade personificada desloca-se até um canto próximo da tela e, simplesmente, num acto de coragem apavorada, mostra-se balbuciante perante a eminência da morte, do messias anatematizado. A Humanidade (agora com letra maiúscula) interpela-se, directamente e sem escapatória, em frente a um espelho, a imagem do fado inelutável.



Fotograma de Apontamentos Para Uma Oresteia Africana (1970), uma 'ficção' de Pier Paolo Pasolini


Nos Appunti Pasolini pensa em voz alta, consigo, com o espectador, com os alunos negros da Universidade de Roma, num filme que não pretende ser nem um documentário nem uma ficção, mas tão só, com alguma ironia sensata, apontamentos para uma ficção. Enquanto pensa nessa “ficção”, Pasolini filma uma África de ricas planícies, de uma biodiversidade efervescente, rostos humanos que se dividem entre uma expressão séria e um semblante jovial, uma África descolonizada, mas acossada pelos ventos de regimes bem moldados, de ideologias firmes, influenciados pela intransigência política demonstrada pelo paradigma da Guerra Fria. Esses apontamentos precedem uma interrogação, essencialmente humana: é possível inventar, reinventar uma Oresteia africana, em plena modernidade? Pasolini acha que sim, que é possível, mas nem todos os alunos concordam com este princípio.

Tendo a história trágica por contexto, Pasolini, em jeito de casting, lança-se na procura de actores hipotéticos que se adeqúem ao papel atribuído. Escolhe uns, descarta outros. Este é o esboço de uma Oresteia africana, envolta em todas as transformações socio-políticas e culturais que o século XX fez questão de instaurar, propulsionada pelos ritmos emancipatórios do free-jazz, numa longa sequência em particular, conjugada pela batuta fantástica de Gato Barbieri. Os Appunti não constituem simples notas de um potencial filme, é todo um exercício de reflexão e análise, levado a cabo por um cineasta preocupado com os problemas do seu tempo. 


Veja mais informação sobre XXIII ciclo d'O Sabor do Cinema aqui

Por Joaquim Pinto

  
 
 

 
 

 

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