terça-feira, 29 de maio de 2012

ENTREVISTA A ANA LUENA: "O teatro move e transforma as pessoas"

Ana Luena (Luanda, 1974) iniciou a carreira teatral há 17 anos, dividindo-se entre a encenação, a cenografia e os figurinos, numa arte que lhe permite trabalhar “com as pessoas e a partir das pessoas”. Em 2007, assumiu a direção artística do Teatro Bruto, e, foi neste contexto, que falamos com a encenadora sobre a companhia portuense, caracterizada pela “estética bruta”, a encenação de textos originais e o trabalho com poetas e romancistas.

Fonte: facebook


Sara C. Branco (SCB): Começou no teatro como figurinista e cenógrafa e, mais tarde, com "Dupla Falta" (2003), deu o salto para a encenação. A que se deveu esta transição e como ocorreu? 

Ana Luena (AL): A minha transição para a encenação foi no Teatro Bruto, embora agora faça encenações para fora. Mas foi no Teatro Bruto que me formei. É preciso ter um grupo de pessoas que apostem no nosso trabalho para nos aventurarmos.
Enquanto cenógrafa e figurinista sempre assisti a todos os ensaios e fazia muitas vezes o papel de assistente de encenação. Sempre tive muito ligada e sempre me interessou a dramaturgia, e tenho um interesse e conhecimento de todas as áreas do espetáculo. Tudo me interessa na criação de um espétaculo, desde as questões mais conceptuais, às mais técnicas, e por necessidade as de produção também.
A direção de atores surgiu mais tarde, durante as experiências de encenação. Como lidar com o ator, encarando-o como criador e, simultaneamente, como um prolongamento das minhas ideias, como transmitir o que se quer, como levar os atores a descobrirem e a proporem. É um trabalho muito particular, intimista e extremamente profissional. Neste momento é o que me move na encenação.
Paralelamente, tive necessidade de me formar nessa área e participei no Curso de Encenação de Ópera da Fundação Calouste Gulbenkian (2007) e obtive o grau de mestre em Teatro - Especialização em Encenação, na Escola Superior de Teatro e Cinema do Instituto Politécnico de Lisboa (2011). 




SCB: O que a atrai mais na encenação? É possível que, no futuro, se aventure pela dramaturgia?

AL: Tudo, Pensar o projeto. Escolher a equipa. Os ensaios de mesa. A dramaturgia e a adaptação de textos. O levantamento de cenas é altamente criativo e intuitivo. A direção de atores. A composição da partitura final no trabalho com as várias áreas (som, luz, movimentação, espaço) e, por fim, a exposição quando se apresenta o espetáculo.
Pela escrita penso que não. Gosto de trabalhar as palavras dos outros. Adaptações cada vez mais. 



SCB: Em 2007, assumiu o cargo da direção artística do Teatro Bruto, onde já colaborava desde a fundação. Que momentos-chave destacaria nestes 17 anos de existência da companhia?

AL: Cada projeto tem a sua importância, a sua particularidade. Uns mais queridos que outros, outros mais determinantes no percurso da companhia. Outros ainda mais revolucionários. Mas posso nomear o Tristerra (1995), o primeiro da companhia que deu o impulso para o projeto e para o grupo (a partir de contos do Miguel Torga) sobre Trás-os-Montes; O Abraça-me (1997) com o encenador João Garcia Miguel, nas antigas Moagens Harmonia.
O Boca (2004), um espetáculo café-concerto em que se musicava diversas cartas de amor da história da literatura, num enredo escrito pela Regina Guimarães e Saguenail, em que participava uma cantora lírica, três atores da companhia e o músico Fernando Rodrigues (ex-W.C.NOISE).
Cratera, As Crianças com Segredos, de valter hugo mãe. E, finalmente, Still Frank, um concerto encenado com um libreto da autoria de Daniel Jonas.
A próxima estreia é o Canil - um texto original de valter hugo mãe - em Guimarães, que depois fará carreira no Porto.



  
Cartazes de alguns dos espetáculos encenadas por Ana Luena no Teatro Bruto 



SCB: Uma das características da programação do Teatro Bruto é a organização das peças em ciclos (Elementos Primordiais - 1997/1999; Círculo da Cor -  2000/2001; De Coração nas Mãos - 2002; Margem - 2003; Fio Condutor - 2004/2006; Projecto Raiz - 2007/2008; Monstro Bruto - 2009/2010). É uma forma de explorar teatralmente vários temas?

AL: Sim, a organização da programação do Teatro Bruto por ciclos temáticos é uma forma de trabalhar temáticas que nos parecem relevantes e interessantes, de uma forma mais estendida no tempo, complexa e aprofundada. A partir da reflexão sobre um tema ou conceito surgem as diferentes propostas e abordagens ao tema unificador, que se traduz na realização de diferentes espetáculos. Essas diferentes abordagens podem assentar na escolha do autor ou numa obra como ponto de partida à composição e formato de cada espetáculo e, ainda, propondo para cada objeto cénico ramificações do tema unificador. 




SCB: Estes diversos ciclos têm algo que os una?

AL: Inicialmente, não havia nenhuma relação consciente entre os diferentes ciclos. Mas, atualmente, e devido a uma maturação dos processos de pesquisa e de reflexão do nosso projeto artístico, o ciclo que se segue sobre a Revolução e Catástrofe é de certa forma proveniente do Monstro, e de todo o trabalho desenvolvido neste último ciclo. Um caminho que é sempre de construção e continuidade artística, que pode também passar pela rutura. 




SCB: Há algun(s) interesse(s) dramatúrgicos e/ou cénicos particulares, sobre os quais incida mais o trabalho da companhia?


AL: Sinto que podemos falar e identificar nos nossos trabalhos uma estética “Bruta”. Mais, particularmente, pela forma como trabalhamos a cena, pela visão que temos do teatro, abrangente e alargada, pelo trabalho desenvolvido na direção de atores, pelo trabalho sonoro e a sua implicação na encenação. 
A encenação como uma composição total na construção do espetáculo. Aparentemente “rude” e crua, mas meticulosa, minuciosa, um trabalho de detalhe, como nos planos do cinema ou na partitura musical. Explorando sempre aquilo que o teatro pode oferecer no que se trata da presença do corpo e no acordo que se estabelece com o público através dos códigos que inventamos. Explorando o lado mais metafisico e ritualista do teatro contemporâneo. 
Há também um gosto especial pelo surrealismo. “O Anjo exterminador” de Buñuel, é uma obra de referência da companhia e que nos tem perseguido. Encarando sempre o teatro não como uma tentativa de aproximação ou retrato da realidade mas como uma realidade construída e vivida.




SCB: A companhia, e a Ana enquanto encenadora, têm trabalhado com escritores conhecidos, a maioria indirectamente ligados à dramaturgia (como o Daniel Jonas, valter hugo mãe, Ondjaki). Porquê este interesse em trabalhar com romancistas e poetas? 

AL: Interessa-me quebrar fronteiras e contagiar o teatro com novas e diferentes perpectivas oriundas de criadores provenientes de outras áreas. E, por isso, o convite a escritores para se aventurarem com o Teatro Bruto na escrita para teatro. Trabalhar um texto nunca antes testado e escrito por um romancista ou poeta implica um trabalho dramatúrgico e de adaptação à cena muito intenso e incisivo. A visão da encenação, por vezes, mistura-se com a visão do autor e transforma-se num processo altamente criativo e de crescimento artístico mútuo.


"Imundação" (2008), peça encenada por Ana Luena, numa co-produção Teatro Bruto e Teatro do Giz




SCB: Uma das matrizes do trabalho do Teatro Bruto consiste em privilegiar a encenação de textos originais escritos, especificamente, para produções vossas. Porquê esta preferência?

AL: Acredito que é relevante o investimento na escrita para teatro, encarado como um trabalho que ultrapassa a fronteira dos interesses particulares da companhia. É importante a aposta na criação original que parte do texto escrito na nossa língua, por autores vivos e da nossa geração. 




SCB: O Teatro Bruto está envolvido em projetos ligados ao ensino teatral (como a Oficina de Interpretação para Teatro ou a Oficina Prática de Luz para Teatro). Que importância concedem à formação e ao trabalho com pessoas mais distantes do teatro?


AL: A minha primeira experiência dentro do género, que agora pretendemos desenvolver como projeto de formação paralelamente às produções da companhia, foi num trabalho que realizei com o Teatro de Giz. Em que na primeira semana de ensaios se abriu à comunidade local, numa espécie de workshop de dramaturgia com um grupo de participantes. Algumas das pessoas que se inscreveram nunca tinham estado implicados num processo criativo de teatro. Senti nessa experiência que o teatro move e transforma as pessoas quando estas se sentem implicadas e envolvidas, diretamente, no processo.  Para mim, enquanto criadora e encenadora, foi importante perceber que pessoas com experiências tão diversas, e com outras formações e profissões, enriqueciam o meu trabalho, trazendo novos imputs e referências e estabelecendo diferentes relações. 
Gosto de trabalhar com as pessoas e a partir das pessoas (e o teatro é o melhor meio para o fazer). Partindo do indivíduo e da sua individualidade para um objetivo mais amplo, mais coletivo, que de certa forma nos ultrapassa e que é o espetáculo ou poderemos dizer a “criação”. 
Proponho o teatro como um espaço em que as pessoas podem partilhar as suas experiências e ideias de uma forma completamente livre, porque o fazem com o propósito de contribuir para a criação e, assim, se vão descobrindo enquanto indivíduos. O teatro é de facto um trabalho sobre a transformação – a metamorfose. Tem essa capacidade, a de mudar. E nós também a temos, de nos transformarmos através do outro. O trabalho do personagem e da encenação está intimamente ligado com a relação entre o “eu” e o “outro”.



SCB: Com a díficil situação económica, têm sentido alguma restrição na programação? De que forma caracterizaria o panorama das companhas teatrais portuenses? E como visiona o futuro? 

AL: Estamos a viver, atualmente, um momento muito díficil pelos cortes na cultura e pelo momento de incerteza. Temos de repensar os projetos e continuar a acreditar que o que fazemos faz sentido e faz falta. Os apoios são escassos e as co-produções também, sem falar na falta de verbas para a circulação dos espectáculos. Penso que há uma diversidade muito grande nas diferentes propostas das companhias e dos grupos, mas carecem, essencialmente, de falta de apoios e é um meio fechado que se traduz em falta de projeção dos trabalhos da cidade para fora. 



Canil
lazer.publico.pt
Na última produção do Teatro BrutoCanil é o esconderijo 'conspiratório' onde um grupo de revolucionários se reúne para discutir planos, falhas e projetos malogrados. Uma comédia negra, com encenação de Ana Luena e texto de valter hugo mãe, que reflete a necessidade de construir uma sociedade mais justa e aberta. Em cena até 16 de Junho (de quarta a sábado), na Fábrica Social, no Porto.






Fonte: blog.teatrouniversitariodoporto.org


CONTACTOS DO TEATRO BRUTO:


Fábrica Social – Fundação Escultor José Rodrigues 


Rua da Fábrica Social, s/n 4000-201, Porto 
Tel./Fax - 913880717
Bilheteira - 960 211 595








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